Fonte: Jurishealth
O sistema de vinculação de precedentes no direito brasileiro, reforçado fortemente pelo Código de Processo Civil de 2015, demonstra uma tendência de valorização das decisões proferidas pelo Superior Tribunal de Justiça e pelo Supremo Tribunal Federal[1]. O novo Código foi instituído por um sistema amplo de precedentes vinculantes, no qual, a decisão proferida pelo Tribunal, em determinado caso concreto, passa a ser obrigatoriamente aplicável pelos órgãos judiciais inferiores para a solução de casos semelhantes. Essa política judicial é chamada de stare decisis[2] e envolve métodos, conceitos e características que devem ser utilizados pelos juristas ao fazer o dissídio jurisprudencial.
Para o estudo da aplicação da política de stare decisis ao enunciado sumular, foi preciso a análise de todas as decisões que deram origem ao enunciado[3], a fim de verificar se os métodos da política de stare decisis foram adequadamente aplicados.
O enunciado n. 609 da Súmula do Superior Tribunal de Justiça foi publicado no Diário de Justiça Eletrônico (DJe) do dia 17/04/2018, referente a julgamento datado de 11/04/2018, pela Segunda Seção do Tribunal, o qual ficou definido da seguinte forma:
A recusa de cobertura securitária, sob a alegação de doença preexistente, é ilícita se não houve a exigência de exames médicos prévios à contratação ou a demonstração de má-fé do segurado.
É possível identificar a presença de duas razões de decidir no mencionado enunciado. São elas: a) a ilicitude da conduta da seguradora que recusa a cobertura securitária, sob a alegação de doença preexistente se não houve a exigência de exames médicos prévios; e b) a ilicitude da conduta da seguradora que recusa a cobertura securitária, sob a alegação de doença preexistente se não demonstrada a má-fé do segurado.
O enunciado utiliza a conjunção “ou” para distinguir as teses jurídicas ali abarcadas, o que quer dizer que é ilícita a conduta diante da ocorrência de qualquer das duas situações apontadas: a ausência de exigência de exames prévios e a demonstração da má-fé.
Destaca-se que não há distinção da natureza do contrato securitário (seguro de vida, seguro de saúde, plano de saúde, seguro habitacional) ao qual é aplicada a tese jurídica.
Diante da análise dos julgados que deram origem ao enunciado, observa-se que apenas o precedente do Recurso Especial n. 1.230.233/MG faz referência à utilização da tese de necessidade de exigência de exames médicos no ato da contratação para recusar a cobertura de doença e lesão preexistente nos contratos de plano/seguro de saúde. Os demais fazem referência à aplicação da tese em contratos de seguro de vida.
É de extrema importância a diferenciação deste precedente entre os demais, pois há no sistema jurídico brasileiro farto arcabouço normativo específico para disciplinar os contratos de plano e seguro de saúde. Os contratos de plano e seguro de saúde são regidos pela Lei n. 9.656/1998 e regulamentados pela Agência Nacional de Saúde Suplementar e suas disposições não se aplicam aos contratos de seguro de vida, que são regidos pela Superintendência de Seguros Privados – SUSEP. Não devem, portanto, os contratos ser tratados de forma unitária, já que a eles não se aplicam as mesmas regras jurídicas.
A tese jurídica firmada pelo enunciado 609 da Súmula do STJ é baseada em precedentes que não têm identidade entre as normas que incidem sobre cada conjunto, estando desatualizados quanto ao marco regulatório que regulamenta as condições de possibilidade de recusa das operadoras de plano de saúde, sob o fundamento de doença e lesão preexistente.
O instituto da superação constitui o enfrentamento de um precedente já preestabelecido sob o fundamento de que ele perdeu seu argumento normativo. É uma tarefa árdua, pois é preciso justificar a razão pela qual determinado precedente perdeu a sua normatividade[4]. O precedente pode ser superado na hipótese de ser considerado uma forma claramente equivocada de interpretar uma determinada norma, na hipótese de ter se tornado incompatível com uma nova legislação e na hipótese de haver claras evidências de que o Poder Legislativo desaprova o precedente. Pode, ainda, ser superado na hipótese de a autoridade do precedente vir sendo minada ao longo do tempo em decisões judiciais esparsas[5].
A hipótese aplicada ao enunciado 609 em relação aos contratos de plano de saúde é a de incompatibilidade do precedente com a nova legislação. Prevê expressamente o artigo 11º da Lei n. 9.656/1998 a possibilidade de exclusão de cobertura de doenças e lesões preexistentes à data da contratação pelo período de vinte e quatro meses, e o artigo 13º do mesmo diploma, que dispõe acerca da possibilidade de suspensão ou rescisão unilateral do contrato em caso de fraude – posteriormente regulamentado pelo artigo 5º da Resolução Normativa n. 162 de 2007, da ANS, no sentido de que o beneficiário deverá informar à contratada, quando expressamente solicitado na documentação contratual, por meio da Declaração de Saúde, o conhecimento de Doença ou Lesão Preexistente, à época da assinatura do contrato ou ingresso contratual, sob pena de caracterização de fraude.
Constitui-se, atualmente, como fato irrelevante, se o contrato firmado é de natureza de vida ou de plano de saúde. Propõem-se, portanto, que esse fato seja considerado relevante, de modo a não aplicá-lo aos contratos de plano de saúde, ante a ausência de reiteradas decisões[6] acerca do tema, considerando o arcabouço normativo – Lei n. 9.656/1998 e as Resoluções Normativas da ANS – que preveem expressamente como lícita a conduta da operadora que nega cobertura de doença preexistente mesmo sem a necessidade da exigência de exames prévios ou da demonstração da má-fé do segurado.
[1] MELLO, Patrícia Perrone Campos; BARROSO, Luís Roberto. Trabalhando com uma nova lógica: a ascensão dos precedentes no direito brasileiro. In O novo processo civil brasileiro: temas relevantes – estudo em homenagem ao professor, jurista e Ministro Luiz Fux. 1. Ed. Rio de Janeiro: GZ, 2018, v. 2, p. 81.
[2] MELLO, Patrícia Perrone Campos. Precedentes no STF: dificuldades e possibilidades. In Direito Jurisprudencial: volume II/ coords. Aluisio Gonçalves de Castro Mendes, Luiz Guilherme Marinoni, Teresa Arruda Alvim Wambier. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.
[3] Os julgados do Superior Tribunal de Justiça que deram origem ao enunciado foram: Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial n. 177.250 MT, Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial n. 330.295 RS, Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial n. 353.692 DF, Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial n. 429.292 GO, Agravo Regimental no Recurso Especial n. 1.299.589 SP, Agravo Regimental no Recurso Especial n.1.359.184 SP, Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial 767.967 RS, Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial n. 826.988 MT, Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial n. 868.485 RS, Agravo Interno no Recurso Especial n. 1280544 PR, Embargos de Declaração no Agravo em Recurso Especial n. 237692 SC e o Recurso Especial n. 1230233 MG.
[4] SILTAIA, Raimo. A Theory of Precedent, p. 73.
[5] SUMMERS, Robert; ENG, Svein. Departures from Precedente. Neil MacCormick; Robert S. Summers (Eds.). Interpreting precedents. p. 525.
[6] As súmulas são extratos que visam retratar precedentes, alocando-se em um nível acima do nível de precedentes. Por isso, deve-se fixar as circunstâncias fático-jurídicas que deram azo à formação dos precedentes subjacentes, devendo-se manter congruência com os julgados que lhe serviram de base. As súmulas vinculantes, por sua vez, instituídas pela Emenda Constitucional n. 45/2004, devem ter por objeto o teor de reiteradas decisões sobre matéria constitucional. A edição da súmula, portanto, não confere à Corte poder normativo autônomo e sem relação com a sua atividade judicante. Nos termos da Constituição Federal, o conteúdo da súmula precisa representar uma síntese da questão sobre a qual a Corte já se pronunciou, no mínimo, mais de uma vez. Nesse sentido: CÂMARA, Alexandre Freiras. O Novo Processo Civil Brasileiro. São Paulo: Atlas, 2015. p. 429; MELLO, Patrícia Perrone Campos. Precedentes – O Desenvolvimento Judicial do Direito no Constitucionalismo Contemporâneo. Rio de Janeiro: renovar, 2008, p. 166.
Marina Fontes de Resende é advogada, mestre em Direito e Políticas públicas e sócia do escritório Advocacia Fontes.
*O artigo é uma Análise da Súmula 609 do Superior Tribunal de Justiça (STJ).