Nas comemorações dos 30 (trinta) anos de instalação do Superior Tribunal de Justiça, acendeu-me o alerta de que o tempo havia passado muito rápido e fiz minha contagem pessoal: vinte e cinco, vinte e seis, vinte e sete … vinte e oito … não é possível! Tornei a contar… vinte e sete, vinte e oito! Fui atrás da publicação da minha posse como assessora no STJ. E confirmei. Em novembro de 2020, terão passados 28 anos desde o primeiro dia em que entrei no Superior Tribunal de Justiça, local que, a partir dessa data, passou a fazer parte da minha vida profissional e pessoal.
Naquela época, o Superior Tribunal de Justiça estava instalado no edifício onde hoje funciona o Tribunal Regional Federal da 1ª região. A belíssima e imponente sede atual ainda estava em construção e pela obra andei ao lado do ministro Adhemar Ferreira Maciel, a quem assessorava desde o TRF-1ª região, inebriada e estarrecida com tanta beleza arquitetônica. O conjunto de edifícios do STJ me fascinou de imediato e sempre me pareceu estar à altura da missão constitucional do órgão.
O enorme vão de concreto armado que liga os blocos frontais onde estão as salas de julgamentos das Turmas, Seções, Pleno e Corte Especial me remontam à ideia de uma “nave-mãe” flutuando no ar. É absolutamente lindo.
E foi pelas mãos e pela mente do brilhante e humano ministro Adhemar Ferreira Maciel que aprendi tantas inesquecíveis lições sobre o direito e a vida. Profundo conhecedor do direito americano, o ministro escreveu inúmeros artigos doutrinários sobre a matéria, incluindo o artigo sobre John Marshall1 onde diz “a natureza, mãe de todos nós, tem lá seus caprichos, suas preferências. Há pessoas que se acham no lugar certo, na hora exata“. Sem se dar conta, ele falava de si próprio. O ministro Adhemar (como o chamávamos no gabinete) era a pessoa certa no lugar certo.
Ele era essencialmente um magistrado dotado de imparcialidade e sensatez. E ocupava o cargo de ministro do Superior Tribunal de Justiça sem almejar nenhum poder ou vantagem decorrentes da importantíssima função pública. Cultivava hábitos de irrepreensível integridade de caráter, de honestidade nas ações e de retidão na administração de seu gabinete. Nunca utilizou o carro oficial para deslocamento de familiares e dele fazia uso restrito para ir e voltar ao tribunal.
Extremamente exigente e escrupuloso na lavratura de seus julgamentos, no uso correto da nossa língua, requisitou para seu gabinete o professor Luiz Pereira dos Santos, concursado, para as correções gramaticais de seus julgados, artigos e dos muitos livros que publicou. Presenciei proveitosas discussões do ministro e do professor sobre filigranas embutidas na linguagem simples e corriqueira que um juiz deveria usar. Invejável o nível intelectual dos dois.
Professor Luiz Pereira dos Santos continua meu grande amigo até hoje e é com suas orações que contei e conto em todos os momentos da vida. Cultivo também a amizade da família do ministro Adhemar, mesmo após seu falecimento, em novembro de 2014, aos 85 anos. A bela Dona Maria Angela, esposa do ministro, a filha Rosângela (para mim, a Rô) e os filhos Paulo, Sérgio, Flávio e Rivane me deram a alegria de deixar na orelha do livro Bill of Rights (publicado post mortem) minha homenagem ao ministro e eu escrevi que seria impossível a despedida, o que ocorreu de fato, apertando a saudade sem dó até os dias de hoje.
E foi nos bastidores de um gabinete sério, justo e honrado, como assessora jurídica, que formei meu conceito sobre o Superior Tribunal de Justiça. Tínhamos rigoroso horário, estatísticas e a ordem de atendermos muito bem os advogados. Parênteses: naquela época, os processos eram físicos, não havia computadores, os advogados eram atendidos sem prévia marcação, bastava o ministro estar no gabinete.
Eu me despedi do gabinete quando fui aprovada no concurso de procurador do Distrito Federal, em 1996. Fui substituída pelo brilhante e até hoje dileto amigo Bernardo Pimentel Souza. Até que eu fosse chamada para assumir o cargo, trabalhei na Advocacia Bettiol por alguns meses. Lá deixei amigos e colhi grandes ensinamentos, apesar do pouco tempo de permanência. Percebi, então, que minha vocação era mesmo a advocacia: a pública e a privada. Essa última eu a tenho exercido quase exclusivamente no Superior Tribunal de Justiça.
Era hora de iniciar meu próprio escritório e lembro perfeitamente da minha mãe ir visitar minha pequena sala alugada e dizer: “filha, é muito bacana você montar um escritório de advocacia, mas você não acha que cuidar de 3 filhos (eram “só” três até então), casa, e ainda ser procuradora não é suficiente?”. Não, não era, felizmente.
No início da minha vida como advogada atuante no Superior Tribunal de Justiça, foi complicado compreender as vicissitudes de estar do outro lado do balcão. E lembro de tantas e tantas histórias. Algumas merecem destaque.
No Superior Tribunal de Justiça, de um modo geral, o advogado é muito bem atendido. Nesses 28 anos, fiz minha primeira sustentação oral da vida na Corte Especial, tremendo e ofegante, além de incontáveis audiências para entrega de memoriais com ministras(os) e assessoras(es).
Lembro-me bem de uma vez em que fui entregar um memorial ao saudoso e querido ministro Humberto Gomes de Barros (para quem tive a honra de coordenar o livro “Temas de Direito em homenagem ao ministro Humberto Gomes de Barros”2). Era um memorial de um caso já em estágio final de julgamento. Quase todos os recursos cabíveis já haviam sido interpostos, mas nosso direito era muito bom, só precisava ser devidamente analisado.
Comecei a explicar o caso, disse: “ministro, estou aqui para trazer um memorial de embargos declaratórios em agravo regimental em agravo de instrumento em recurso especial”. Ele se ajeitou na cadeira, olhou com atenção para mim e respondeu: “vou prestar toda a atenção do mundo, porque numa situação processual dessa, seu cliente deve ter muita razão ou você não estaria lutando tanto”. De fato, tinha, não era insistência vã, ganhamos a causa.
Inesquecível também foi a audiência de conciliação realizada no gabinete do ministro Massami. Procedimento incomum porque, acredito eu, os ministros não têm tempo para isso. Era caso de família. O casal, separado há anos, não se falava. Disputa de patrimônio. Feito o pregão pelo atenciosíssimo assessor, Dr. Tadeu, entramos todos no gabinete, sentamos meio sem jeito, pouco ambientados, além do desconforto entre as próprias partes.
O ministro Massami chegou com sua paz oriental, sentou-se à cabeceira da mesa de reunião de seu gabinete e falou mais ou menos assim: “entre as maiores dores morais enfrentadas pelos seres humanos estão a morte, a separação e ser parte em litígio judicial”. Olhou para as partes e concluiu: “vocês têm hoje a oportunidade de sair daqui livres de duas dessas dores. Peço que deliberem com calma sobre a possibilidade de um acordo”. Agradeceu, levantou, pediu licença e saiu para que as partes e os advogados conversassem livremente.
O acordo foi feito e lembro de ter deixado o ex-casal no aeroporto e observado que se falaram respeitosamente durante o percurso. A partir daí, minha admiração pelo ministro Massami e pelo Dr. Tadeu se fortaleceu e até hoje tenho a alegria de desfrutar da amizade de ambos.
Lembro com sorriso no rosto das inúmeras sessões de julgamento nas Turmas, Seções e Corte Especial, além das posses com filas quilométricas. E foi numa sessão de julgamento que um advogado que eu não conhecia e estava ao meu lado se recusou a levantar-se quando iniciada a sessão. O segurança chegou perto dele e pediu com muito jeito que ele se levantasse. Ele disse: “saio, mas não levanto, os ministros não são mais importantes do que os advogados”. E assim o fez.
Eu já estava de pé e fiquei pensando sobre o significado do “ritual” consistente em levantar quando os ministros entram e saem das sessões de julgamento. Curioso, até aquele dia sempre julguei que essa postura fazia parte do respeito que se deve aos julgamentos que serão realizados (as vidas e negócios envolvidos em cada processo) e não necessariamente aos magistrados presentes na sessão. Talvez sejam os dois, mas, para mim, não fez a menor diferença porque nunca me senti menor ou maior, nem sequer me comparei a qualquer magistrado em termos hierárquicos, até porque não faz nenhum sentido, pois apenas fazemos parte do mesmo sistema, e ministras e ministros também se levantam para receber as advogadas(os) em seus gabinetes em sinal de respeito e educação.
Ainda sobre rituais nas sessões de julgamento, eu quase não me contive uma vez quando um advogado (ou era parte, não me lembro bem) foi barrado na porta da sessão de uma sessão da Turma porque estava sem terno e gravata. O segurança o encaminhou para um local onde poderia pegar emprestado a indumentária e, assim, participar da sessão. Quando ele entrou na sessão com um terno marrom-laranja-curto, mostrando as canelas, com gravata preta, eu confesso que não resisti e tive que sair da sessão para não ter uma crise de riso. Talvez essa exigência (como a do senta/levanta) esteja com dias contados.
É bom lembrar que não faz muito tempo que nós mulheres advogadas não podíamos usar calça comprida para entrar no plenário do Supremo Tribunal Federal. Era obrigatório o uso de vestidos ou saias. A liberação do uso da calça comprida foi anunciada pela mídia como o último ato do ministro Sepúlveda Pertence na presidência do STF (24 de maio 1997 para ser mais exata).
Mas nem tudo foram ou são flores na advocacia perante o Superior Tribunal de Justiça. Entre saltos quebrados e batons retocados passei por situações bastante desagradáveis, mas foram bem raras. Lembro de quando fiquei mais de três horas para ser recebida por um ministro hoje aposentado, felizmente. De meia em meia hora, eu apertava a campainha, e o assessor dizia: “ele vai te atender, doutora, está finalizando uma liminar”. Até que o assessor veio e disse: “doutora, lamento, mas o ministro foi para o TSE porque terá sessão hoje e não poderá te atender”. Eu já não me lembro mais as palavras indizíveis que passaram pela minha cabeça. Claro que me calei e simplesmente agradeci.
Nós, advogados, sabemos que não se deve contrariar assessores, nem insistir em demasia, afinal, estamos ali representando o interesse de nossos clientes e qualquer atitude irascível poderá prejudicá-los. Mas resolvi não desanimar. Estava determinada e iria entregar o memorial porque tinha recebido essa missão do meu cliente e era mesmo imprescindível. Do STJ segui direto para o TSE e me dirigi ao gabinete do mesmo ministro. Disse ao assessor do TSE com sorriso artificial: “venho do gabinete do ministro no STJ e passei a tarde toda lá aguardando para entregar a ele este memorial. Acredito que o ministro não deixará de me receber cinco minutinhos”. Fui atendida até que de uma forma atenciosa para os parâmetros daquele magistrado. Como disse, felizmente, aposentou.
A propósito, há ministras e ministros que aposentam e deixam saudades verdadeiras. Há outros que deixam saudades aliviadas. E há os que não deixam saudades nenhuma. Há ministras e ministros que não gostam de advogados, não os respeitam. Certamente não têm prazer no que fazem, não têm a mínima vocação. Ocupam o cargo errado. São aqueles que contamos os dias para suas aposentadorias. Vão tarde de onde nunca deveriam ter chegado.
Uma alegria era ser recebida nos gabinetes dos ministros Sálvio de Figueiredo, Carlos Alberto Direito, Eduardo Ribeiro, Fernando Gonçalves, Arnaldo Esteves Lima, Eliana Calmon, Milton Luiz Pereira, Hélio Quaglia, Humberto Gomes de Barros, Ruy Rosado, Castro Filho, entre outros que lamentarei futuramente não ter declinado o nome por absoluto esquecimento. Foram também inesquecíveis as audiências com o ministro Ari Pargendler, geralmente antes das sete da manhã, sempre com toda atenção e disposição de quem parecia ter acordado fazia tempo e estava no auge de seu tirocínio intelectual enquanto eu ainda despertava.
Todos esses ministros e ministras se ocupavam realmente do que ouviam, faziam perguntas concretas e anotavam detalhes sobre o processo, se interessavam, e concluíam: “vou analisar, doutora”, o que realmente acontecia. E eu saia feliz do gabinete com a sensação de missão cumprida, de ter bem desempenhado meu compromisso profissional com meu cliente.
De um modo geral, eu sempre estive acompanhada, aliás, muito bem acompanhada nessas audiências. Como o Superior Tribunal de Justiça é federal, atuei e me tornei amiga de vários advogados Brasil afora. Aprendi muito com os diretores e advogados dos jurídicos internos das empresas, permanente cobrados pelas áreas comerciais, sócios, acionistas nacionais e estrangeiros. E tantas outras lições recebi dos advogados do contencioso, os que seguem no front, atrás dos balcões e entre esses eu reúno no dr. Arystóbulo Freitas as melhores qualidades de um advogado: inteligente, sagaz, humilde, honesto, sereno e gladiador. Ele (e toda sua equipe) é desses a quem a gente agradece por não ser ex adverso nos embates da advocacia.
De regra, no entanto, meu parceiro de andanças pelos corredores do STJ é meu sócio Hugo Teles e, mais recentemente, minha filha e sócia, Marina Fontes. Hugo é a definição do homem bom, o que cultua o hábito de ser virtuoso como uma “força que pode ou não agir”, segundo Aristóteles. Ele age, quer ser bom, luta pelo bem-estar social.
Percorrer os corredores do STJ na companhia do Hugo é sempre uma diversão, um enorme prazer. Nas viagens que fazemos juntos ele faz ressoar, sempre, boas gargalhadas, especialmente quando vencemos um bom combate. Brilhante, sereno, escrupuloso, ri dos exageros e histórias da sócia impertinente e exagerada.
Atualmente, sigo também com a Marina minha filha. É simplesmente impossível não me encher de orgulho em ver aquela mulher (que um dia frequentou o STJ na minha barriga) explicando o caso com detalhes e determinação para uma atenta ministra ou ministro. Ao final, concluo sob o crivo de seu olhar: “ministra(o), é minha filha, já posso aposentar, não é?”. E saímos as duas corredor afora discutindo o caso, eu já perdoada pelo ato de corujice.
E por falar em Marina, nesses 28 anos cresceram meus amadíssimos quatro filhos: Roger, Paulinho, Marina e Lulu, além da minha neta que chegou recentemente, Bella. Tive amores e desamores. Perdi meu pai. Perdi, também com muita dor, amigos do coração que conheci na profissão e se foram muito prematuramente: Osíres Lopes Neto e Maria do Carmo Guerrieri Saboya Reis. A vida pessoal, portanto, fluiu com suas alegrias e dores. A experiência da maternidade de quatro filhos com as atividades do escritório e da Procuradoria-Geral do Distrito Federal me rendeu um lindo e inesquecível convite das jovens advogadas do “Elas Pedem Vista” para falar sobre “Maternidade e Advocacia”. Eu me esbaldei com o convite da Dra. Júlia de Baére Cavalcanti d’Albuquerque, a quem considero como filha. Sentada ao lado das competentes e combativas advogadas Anna Maria Reis Trindade e Cristiana Romano, expusemos nossas experiências profissionais atreladas à maternidade. Não teve caminho fácil para ninguém.
Também atuei no Superior Tribunal de Justiça como advogada pública na Seção de Direito Público, ao lado de brilhantes colegas. Na Procuradoria-Geral do Distrito Federal, trabalhei por quase 23 anos até minha aposentadoria, em 2018. Guardo de lá também inúmeras e curiosíssimas histórias oriundas dos pareceres e ações judiciais. Guardo, também, a gratidão por conviver com tantos colegas de altíssimo nível intelectual que, generosos, até hoje me socorrem nos casos mais complicados que aparecem. Antes de me aposentar, para minha alegria, a Procuradoria-Geral do Distrito Federal teve em sua direção duas competentes procuradoras que reúnem, ambas, alma e musculatura. A Dra. Paola Aires Corrêa Lima foi a primeira mulher Procuradora-Geral do Distrito Federal, a quem sucedeu dra. Ludmila Lavocat Galvão Vieira de Carvalho, atualmente no cargo.
E foi passando da era dos processos físicos, máquinas de datilografia para a era digital com julgamentos realizados pela inteligência artificial. Agora, com a pandemia do covid-19 – sobre a qual levaremos ainda muito tempo para compreender seus impactos em nossas vidas pessoais e profissionais -, chegamos aos julgamentos virtuais via Youtube. Fico boquiaberta. O Judiciário, como um todo, tem feito um grande esforço para tentar dar um aspecto de normalidade a esses tempos de horror e incertezas. De fato, é preciso continuar, é preciso acreditar que a vida segue, e a continuidade dos julgamentos, dos prazos, nos remete à sensação de que tudo vai ficar bem, que logo seguirá um novo tempo.
Eu poderia seguir escrevendo, mas a essa altura eu me pergunto por que estou falando dessas coisas, quem se interessará por isso. Aí lembro de uma recente pergunta feita pela minha caçula, Luiza, “mamãe quando você vai aposentar de verdade? Quando vai deixar a advocacia agora que você se aposentou da Procuradoria?”.
Nem titubeio e respondo: “quando eu deixar de ser feliz no que faço, mas acho que não vai acontecer tão cedo”. Ao responder à minha filha, eu penso cá comigo que são essas minhas memórias afetivas profissionais que me sustentam e me fazem seguir na árdua e prazerosa profissão que abracei e, mesmo sem interessados no que escrevo ou na minha experiência, é muito bom olhar para trás e tirar do baú essas histórias curiosas e cheias de humanidade. Elas me dão a certeza de que há muito ainda pela frente e nada a recear sobre a indigitada inteligência artificial ou sobre os desígnios de uma nova era pós-pandemia porque, afinal, nós advogadas e advogados seremos sempre indispensáveis à administração da Justiça (art. 133 da CF).
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1 MACIEL, Adhemar Ferreira. O acaso, John Marshall e o controle de constitucional. Revista de Informação Legislativa, Brasília DF, ano 43, n. 173 out./dez. 2006.
2 Temas de Direito em homenagem ao ministro Humberto Gomes de Barros. Coordenação: Renata Barbosa Fontes. Editora Forense. 2000.
Fonte: https://migalhas.uol.com.br/